segunda-feira, 30 de junho de 2008

Vale e Azevedo

É sempre uma tristeza quando percebemos que os filmes nos andam a enganar. Sempre imaginámos a vida de fugitivo como difícil. Naquele filme do Harrison Ford, o pobre senhor fartava-se de correr e sofrer. Mas, afinal, parece que não é bem assim. Não é preciso ficar numa caverna a comer milho enlatado e a ler Nova Gente velhas, qual Osama Bin Laden. Olhe-se para Vale e Azevedo, que até conseguiu engordar uns quilitos e ficar com um ar mais saudável. Assim sim, vale a pena fugir-se à justiça, até nos parece uma carreira de futuro. Consiste basicamente em andar em carros de luxo, ver umas partidas de ténis e ir a uns restaurantes. Pronto, é preciso um ou outro frete de gritar com o Rodrigo Guedes de Carvalho – mas qual de nós não mandou uns berros para a televisão quando vê aquele pivot demasiadamente bronzeado a fazer piadas?
Em directo para a televisão, Vale e Azevedo mostrou-se um homem aborrecido. E, lá está: um fugitivo devia estar, isso sim, angustiado. Mas o ex-Presidente do Benfica não chega a tanto e está apenas aborrecido, qual dona de casa maçada porque não usou Calgon em todas as lavagens. Diz que se recusa a ir para Portugal pelo próprio pé para ser preso, que têm de o vir buscar a Londres. Até aqui demonstra ter um coração grande: quer que a polícia portuguesa viaje. Que aproveite para fotografar o render da guarda em Buckingam e para comprar um globo com neve e ver o Big Ben. No fundo, que venham espairecer – que Vale e Azevedo até abdica de acumular mais milhas de passageiro frequente.
O fugitivo aproveitou também para dizer que já foi a tribunal mais de 500 vezes, algo que está ao nível de entrar no Guiness. E é aqui que vemos que ainda estamos perante um português comum, como nós. Para lá do Bentley, do iate e da mansão ao lado do Abramovich, continua alguém que só quer bater um record, como o povo de Santo Tirso que faz trouxas-de-ovos com 120 gemas.


Condutoras de Domingo

quinta-feira, 26 de junho de 2008

Tea for two...







...and two for tea!


Aos filmes dos anos 50 e às tardes de Sol!

terça-feira, 24 de junho de 2008

Se te queres matar...

Se te queres matar, porque não te queres matar?

Ah, aproveita! que eu, que tanto amo a morte e a vida,

Se ousasse matar-me, também me mataria...

Ah, se ousares, ousa!

De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas

A que chamamos mundo?

A cinematografia das horas representadas

Por actores de convenções e poses determinadas,

O circo policromo do nosso dinamismo sem fim?

De que te serve o teu mundo interior que desconheces?

Talvez, matando-te, o conheças finalmente...

Talvez, acabando, comeces...

E, de qualquer forma, se te cansa seres,

Ah, cansa-te nobremente,

E não cantes, como eu, a vida por bebedeira,

Não saúdes como eu a morte em literatura!


Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!

Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém...

Sem ti correrá tudo sem ti.

Talvez seja pior para outros existires que matares-te...

Talvez peses mais durando, que deixando de durar...


A mágoa dos outros?... Tens remorso adiantado

De que te chorem?

Descansa: pouco te chorarão...

O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco,

Quando não são de coisas nossas,

Quando são do que acontece aos outros, sobretudo a morte,

Porque é a coisa depois da qual nada acontece aos outros...


Primeiro é a angústia, a surpresa da vinda

Do mistério e da falta da tua vida falada...

Depois o horror do caixão visível e material,

E os homens de preto que exercem a profissão de estar ali.

Depois a família a velar, inconsolável e contando anedotas,

Lamentado entre as últimas notícias dos jornais da noite,

Interseccionando a pena de teres morrido com o último crime...

E tu mera causa ocasional daquela carpidação,

Tu verdadeiramente morto, muito mais morto que calculas...

Muito mais morto aqui que calculas,

Mesmo que estejas muito mais vivo além...


Depois a retirada preta para o jazigo ou a cova,

E depois o princípio da morte da tua memória.

Há primeiro em todos um alívio

Da tragédia um pouco maçadora de teres morrido...

Depois a conversa aligeira-se quotidianamente,

E a vida de todos os dias retoma o seu dia...


Depois lentamente esqueceste.

Só és lembrado em duas datas, aniversariamente:

Quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste.

Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada.

Duas vezes no ano pensam em ti.

Duas vezes no ano suspiram por ti os que te amaram,

E uma ou outra vez suspiram se por acaso se fala em ti.


Encara-te a frio, e encara a frio o que somos...

Se queres matar-te, mata-te...

Não tenhas escrúpulos morais, receios de inteligência!...

Que escrúpulos ou receios tem a mecânica da vida?

Que escrúpulos químicos tem o impulso que gera

As seivas, e a circulação do sangue, e o amor?

Que memória dos outros tem o ritmo alegre da vida?


Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem,

Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma?


És importante para ti, porque é a ti que te sentes,

És tudo para ti, porque para ti és o universo,

E o próprio universo e os outros

Satélites da tua subjectividade objectiva.

És importante para ti porque só tu és importante para ti.

E se és assim, ó mito, não serão os outros assim?


Tens, como Hamlet, o pavor do desconhecido?

Mas o que é conhecido? o que é que tu conheces,

Para que chames desconhecido a qualquer coisa em especial?


Tens, como Falstaff, o amor gorduroso da vida?

Se assim a amas materialmente, ama-a ainda mais materialmente:

Torna-te parte carnal da terra e das coisas!

Dispersa-te, sistema físico-químico

De células nocturnamente conscientes

Pela nocturna consciência da inconsciência dos corpos,

Pelo grande cobertor não-cobrindo-nada das aparências,

Pela relva e a erva da proliferação dos seres,

Pela névoa atómica das coisas,

Pelas paredes turbilhonantes

Do vácuo dinâmico do mundo...



Álvaro de Campos



Aos 120 anos de Fernando Pessoa, ao DireitoÀCena e ao pequeno Sushi!